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Ontem foi um dia longo na Casa da Mulher Brasileira de Campo Grande, principalmente na repartição pública mais importante do condomínio localizado próximo ao aeroporto, a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam).
Por volta do meio-dia, nove delegadas de polícia que trabalham no local saíram em defesa de outras três colegas e colocaram seus cargos à disposição. O dia terminou com todas elas ainda trabalhando no local e com o atendimento prosseguindo normalmente.
Em meio a tudo isso, houve ameaça das profissionais, ato que poderia paralisar as atividades da Casa da Mulher Brasileira de Campo Grande, a primeira do Brasil, inaugurada há 10 anos.
As três delegadas com as quais as colegas se solidarizaram são a titular da Deam, Elaine Cristina Ishiki Benicasa, e as auxiliares Ricelly Donha e Lucélia Constantino.
Elas estão sujeitas a ser alvos do processo disciplinar que investigará omissões, negligências e mau atendimento à jornalista Vanessa Ricarte, de 42 anos, que foi assassinada pelo ex-noivo horas depois de buscar auxílio na Deam.
Ricelly, inclusive, ingressou no serviço público em junho do ano passado e ainda está em estágio probatório. Ela assina o boletim de ocorrência em que Vanessa informou a violência doméstica do ex-noivo.
Foi depois de lavrar este boletim, na noite do dia 11, que a jornalista de 42 anos, servidora do Ministério Público do Trabalho, enviou o áudio a uma amiga, desabafando sobre o mau acolhimento na Casa da Mulher Brasileira.
“Eu estou bem impactada com o atendimento da Deam, da Casa da Mulher Brasileira. Eu que tenho toda instrução, escolaridade, fui tratada dessa maneira […]. Assim, sabe? [Se] eu que tenho toda a instrução, escolaridade, fui tratada dessa maneira, imagina uma mulher mais vulnerável, pobrezinha, chegar lá toda vulnerável, sem ter rede de apoio nenhuma. Essas que são mortas, né? Essas que vão para a estatística de feminicídio”, relatou, na ocasião, a jornalista, no intervalo entre um dos atendimentos na delegacia e seu assassinato.
A CATARSE
Desde a publicação das revelações de Vanessa, horas depois de seu sepultamento, na sexta-feira, milhares de mulheres que sobreviveram às agressões de seus companheiros foram às redes sociais relatar que se identificavam com a jornalista vítima de feminicídio.
A catarse provocada pelos áudios em que Vanessa confidencia seu descontentamento com o atendimento e o acolhimento na Deam gerou uma crise em todo o sistema de proteção às vítimas de violência de Mato Grosso do Sul e lançou os holofotes da sociedade sobre a qualidade do trabalho das delegadas.
A classe, desde então, está na defensiva. Na sexta-feira, começaram os “contra-ataques”, feitos por meio da Associação dos Delegados de Polícia de Mato Grosso do Sul (Adepol-MS), atacando o trabalho da imprensa por ter divulgado os áudios.
Na noite de sexta-feira o governador de Mato Grosso do Sul, Eduardo Riedel, anunciou que o atendimento de Vanessa Ricarte pela Polícia Civil seria objeto de investigação e que ele já estava trabalhando para identificar as falhas no atendimento e melhorar os processos.
No domingo, o governador reconheceu a falha do sistema e reiterou, na noite desta segunda-feira, a falha identificada no atendimento a Vanessa em rede nacional, no programa “Roda Viva”.
O afastamento das delegadas foi colocado em pauta em uma reunião no domingo, mas o comando da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública e a Polícia Civil convenceram o governador a esperar o resultado das investigações antes de falar em qualquer afastamento.
A REBELIÃO
Alvo de críticas em redes sociais e expostas pelo áudio de Vanessa, o grupo de 12 delegadas da Deam se uniu e anunciou que os cargos que ocupam na delegacia estavam sendo colocados à disposição no fim da manhã de ontem.
O anúncio foi feito logo após reunião dos deputados estaduais com diretores da Polícia Civil, o secretário de Estado de Justiça e Segurança Pública, Antônio Carlos Videira, e representantes do Poder Judiciário.
Simultaneamente, a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, estava reunida com o governador Eduardo Riedel (PSDB) ajustando medidas para otimizar o atendimento na Casa da Mulher Brasileira e, consequentemente, na Deam.
A principal medida ajustada entre o governador e a ministra foi a de filmar todos os atendimentos às vítimas de violência doméstica.
A pressão nas redes sociais, os áudios de Vanessa e a notícia da implementação das medidas para melhorar o atendimento levaram as delegadas a reagir, colocando seus cargos à disposição coletivamente.
Se o governador, o secretário de Estado de Justiça e Segurança Pública ou o delegado-geral da Polícia Civil aceitassem o pedido, não haveria mais atendimento na Deam e as vítimas de violência ficariam desprotegidas.
Depois do blefe ousado das delegadas, a “turma do deixa disso” atuou. Pudera, o sistema poderia entrar em colapso por causa da renúncia coletiva.
O que sobrou do mise-en-scène da manhã foi uma nota pública em que as delegadas da Deam não prestam nenhuma solidariedade à família de Vanessa nem refletem sobre as revelações que vieram a público.
Elas preferiram chamar o teor dos áudios de Vanessa, que chocou muitas pessoas, de “sensacionalismo” e “exploração midiática” de um caso cruel. Vanessa, diga-se de passagem, integrava a imprensa que as delegadas acusaram em nota.
“Expressamos nossa indignação diante dos ataques injustos e sensacionalistas dirigidos à nossa equipe, que se dedica há anos à proteção e à defesa das vítimas de violência”, afirmaram as delegadas no documento endereçado a Eduardo Riedel (PSDB), ao diretor-geral de Polícia Civil, Lupércio de Degerone, e ao secretário de Estado de Justiça e Segurança Pública, Antônio Carlos Videira.
Elas prosseguiram: “A exploração midiática de um caso tão cruel de feminicídio, movida pela busca por popularidade, desrespeita a memória da vítima e de seus familiares, além de desvalorizar o trabalho sério de policiais que atuam diariamente para garantir justiça”.
Sobre o atendimento, Vanessa expôs no áudio que uma das delegadas sugeriu que ela pedisse ao ex-noivo, via mensagem de texto, que deixasse a casa momentaneamente para que ela fosse buscar as roupas.
Vanessa atendeu à sugestão da delegada e foi acompanhada de um amigo, mas não voltou viva.
Correio do Estado